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Felipe Catalani

De onde vêm os monstros

Posfácio para a edição brasileira de Günther Anders: Nós, os filhos de Eichmann, apresentamos aqui o posfácio do editor e tradutor.

Felipe Catalani é mestre em filosofia pela Universidade de São Paulo (usp) e realizou estágios de pesquisa nas universidades Humboldt, em Berlim, e Paris-Nanterre, em Paris. Seu doutorado, em andamento, dedica-se ao estudo da obra de Günther Anders.

Das Nachwort auf Deutsch, vom Autor übersetzt / O posfácio em alemão,
traduzido pelo autor: Woher die Monster kommen

Em uma carta de 12 de outubro de 1965, cogitando uma possível visita a seu amigo Günther Anders, Herbert Marcuse escreve o seguinte:

Eu preciso vê-lo e reclamar com você — também não posso esconder que fiquei furioso com seu Filhos de Eichmann. Isso não dá. Não podemos mais nos dar ao luxo de sermos goody-goodies e de apelar ao sentimento e ao bom-senso de bestas desprovidas de qualquer sentimento e bom-senso. Porque toda argumentação já é conciliação, e mesmo traição em relação aos que foram mortos por essas bestas — e os filhos de Eichmann, caso tenham a chance (o que é provável), farão novamente com entusiasmo aquilo que já fizeram. Você é um homem irredutível — e por isso eu o admirava. Não se entregue escrevendo cartas de amor aos carrascos. Günther: nós (também você?) estamos velhos. Não usemos o tempo que ainda temos com compreensão profunda e benévola para com aqueles que são aliados do horror… em que precisamos empregar nosso tempo, isso não preciso lhe dizer.

 [1]

Günther Anders: Nós, filhos de Eichmann carta aberta a Klaus Eichmann tradução e posfácio „De onde vêm os monstros“: Felipe Catalani. Editora Elefante: São Paulo 2023. 112 páginas

Não é de todo improvável que o leitor atual desta carta aberta ao filho de Adolph Eichmann tenha uma sensação similar à que teve Marcuse: o apelo de Anders ao jovem Klaus Eichmann de fato parece, em vários momentos, descabido. No entanto, não devemos nos esquecer que, àquela altura, Anders já havia se correspondido com outra figura emblemática da bestialidade de nossa época — ou monstruosidade, como ele prefere dizer —, a saber, Claude Eatherly, um dos pilotos americanos envolvidos na missão de soltar uma bomba nuclear sobre a cidade de Hiroshima e que, à época, tornou-se relativamente célebre por seu “adoecimento” mental, que o levava a cometer pequenos furtos e assaltos com a finalidade de ser punido. Ao mesmo tempo, Eatherly era elevado à condição de herói nacional, de modo que sua culpa (real) era tratada como um caso patológico de guilt complex — lembremos que, sobretudo nos Estados Unidos, toda crítica às armas nucleares era (e é) recebida como atentado à segurança nacional. Coube-lhe o destino de ficar internado em um hospital psiquiátrico militar monitorado, sendo-lhe vetada a experiência da culpa e do remorso que, por sua vez, vinculava-se à tomada de consciência em relação à monstruosidade do ato do qual ele havia participado. Foi na correspondência com Günther Anders, que havia lhe enviado seus Mandamentos para a Era Atômica e que lhe escreveu: “você está condenado a permanecer como doente ao invés de culpado” [2], onde ele encontrou alguém que reconhecia sua culpa, isto é, sua responsabilidade — algo que possibilitou uma melhora clínica no ex-piloto, que passou então a se engajar contra aquilo no qual ele havia tomado parte, isto é, o genocídio nuclear, cuja ameaça perdura desde 1945.

Se Anders chegou a ver em Eatherly uma “contrafigura a Eichmann” [3] (embora ambos sejam figuras gêmeas naquilo que realizaram) foi porque, apesar de seu “catastrofismo”, o autor d’A obsolescência do homem nutre uma perspectiva em relação à “plasticidade dos sentimentos” dos seres humanos, à qual ele vincula a capacidade humana de imaginar que, na época da “discrepância prometeica”, ficou aquém daquilo que o homem pode produzir, ou seja, de sua capacidade técnica. De tal modo que se tornou tecnicamente possível o assassinato de centenas de milhares de pessoas, embora esse ato mesmo extrapole a fantasia humana — e é justamente porque tais atos extrapolam a fantasia humana que eles se tornam possíveis, e não apesar dessa discrepância entre agir e imaginar; é esse o vínculo íntimo entre a magnitude da barbárie de Auschwitz e Hiroshima e o ponto alcançado pelo processo civilizatório da modernidade capitalista. [4] No entanto, se há algo como um “humanismo” (empregamos o termo, a despeito das confusões que ele pode acarretar) no autor que via obsolescências por toda parte, ele se vinculava à transformabilidade do ser humano, isto é, a seu caráter não fixo, exatamente como no leitmotiv de Brecht, que tinha horror às naturalizações dos vícios dos homens. [5] É nessa tensão entre pessimismo da inteligência e otimismo da prática que Ludger Lütkehaus viu em Anders “esse caráter duplo de niilista ontológico-axiológico e rigoroso antiniilista em seu engajamento”. [6]

Em resposta à carta de Marcuse, Anders diz se tratar de um grande “mal-entendido”:

Esse mal-entendido decorre exclusivamente do fato de que vivemos em dois mundos completamente diferentes (eu, por exemplo, em um totalmente sem judeus) e que falamos para públicos completamente diferentes. Não passaria pela cabeça de ninguém aqui na Europa compreender meu Filhos de Eichmann como goody-goody. Pelo contrário: eu sou difamado como alguém que tem sede de vingança — o efeito do mesmo texto em meios diferentes pode ser, desse modo, tão diverso. A isso se soma o fato de que só aparentemente a carta era direcionada ao filho do Eichmann, e que apresento a bestialidade como sendo a situação atual.

 [7]

Se a carta foi um gênero literário bastante importante para Anders, é porque ela representa, literalmente, o texto endereçado por excelência. Neste pequeno livro, é constante a interpelação ao leitor e o uso do pronome na segunda pessoa. Mas (e isso vale também para a correspondência com Eatherly) os endereçados são igualmente o público geral, incluído na também recorrente primeira pessoa do plural, em um nós que aparece já no título. E, como Anders costuma enfatizar, seus interlocutores não são professores e estudantes de filosofia, mas um público tão diverso como o era o próprio movimento antinuclear, que incluía “médicas da Indonésia, teólogos protestantes da Alemanha e dos Estados Unidos, sindicalistas da Índia, monges budistas do Japão, cientistas nucleares dos mais diversos países e estudantes da África”. [8] Assim, Nós, filhos de Eichmann pode ser lido também como uma versão sintética e prêt-à-porter de algumas de suas principais teses desenvolvidas em outras obras mais extensas.

O incômodo de Marcuse talvez passe sobretudo pela impressão dada pelo texto de que Anders estaria quase inocentando Eichmann. Ciente desse perigo, o autor faz questão de explicitar do que se trata e por isso escreve para Klaus: “temo que você receba meus argumentos como um desencargo da culpa de seu pai”, ao mesmo tempo alertando que “não poderia imaginar mal-entendido pior”. Mas por que é possível ter essa impressão (equivocada) ao lermos esse texto? Pois, de fato, a tensão entre a culpa (a responsabilidade) individual por um crime monstruoso e o caráter socialmente sistêmico (impessoal, portanto) desse mesmo crime atravessa de cabo a rabo esta carta aberta a Klaus Eichmann — e, de modo geral, também todos os estudos de Anders dedicados ao que podemos chamar de mudança estrutural do conformismo. Mas se falamos aqui em “conformismo”, não se deve ter em mente a imagem tradicional daquele que contempla em oposição ao que age, ou do burguês confortavelmente sentado em uma poltrona, digno de figurar em um romance de Zola ou Balzac. Estamos nos referindo antes à situação em que (como escreve Anders em seu ensaio sobre Esperando Godot, de Beckett) “o fazer se tornou uma variante da passividade”. [9] Ou seja, trata-se de identificar como funciona essa nova forma humana da atividade, que embaralha ação e trabalho, e que permitiu nada menos que “os maiores trabalhos sujos da história”. [10]

Nessa situação, a “maldade” (que permitia algo como culpa individual), depois de ter se transformado em sistema, parece pertencer a outra época. Por isso também Hannah Arendt dizia ser inadequado afirmar que Eichmann era uma pessoa “cruel”. A percepção desse fenômeno tampouco era estranha aos frankfurtianos: Adorno, em um curso sobre filosofia moral, insiste que, “como Horkheimer formulou, não há mais pessoas boas ou más. As possibilidades objetivas da decisão moral estão encolhidas” [11] — o que implicava, no limite, a própria obsolescência da filosofia moral. Ainda que Kant tivesse ambições mais normativas do que descritivas em sua Crítica da razão prática, o que se observava àquela altura do século xx era o desaparecimento dos pressupostos materiais e sociais da autonomia moral como guia da ação, isto é, a palavra “indivíduo”, em sua acepção propriamente moderna, já não parecia se referir a nada. Essa brutal redução dos indivíduos à função social que exercem havia sido igualmente pressentida por Kafka, que, antecipando o que viria a ser o século que se iniciava, colocou na boca de um dos personagens de O processo: “Sou contratado para espancar, logo espanco”.

A pergunta que norteia a investigação de Anders poderia ser, portanto, traduzida em termos que não são do autor: o que forma os sujeitos da dominação sem sujeito? Quais são as mutações da alma nessa “participação [Mit-Tun] ativa-passiva-neutra”, que funciona por meio de um “princípio ‘medial’-conformista”? [12] Longe de querer simplesmente dissolver a responsabilidade dos indivíduos que participaram das maiores atrocidades do século xx, Anders quer mostrar que Eichmann é, de certo modo, a ponta do iceberg de um enorme sistema de colaboração no qual se transformou a sociedade moderna. O problema não é somente que as pessoas “sujam as mãos” no horror, mas que elas o fazem mantendo-se “inocentes”, pois psicologicamente elas já não podem mais, devido ao caráter infinitamente mediado dos processos sociais, reconhecer o resultado de uma ação como sendo de fato “delas”. Por isso “a compreensão do tornar-se inocentemente culpado, do caráter indireto do envolvimento de hoje, é a investigação decisiva, indispensável de nossa era”. [13] Esta carta a Klaus Eichmann é certamente uma contribuição para essa investigação, que não deixa de ter no horizonte, como diria o amigo Herbert, o instante da “Grande Recusa”.

felipe catalani é mestre em filosofia pela Universidade de São Paulo (usp) e realizou estágios de pesquisa nas universidades Humboldt, em Berlim, e Paris-Nanterre, em Paris. Seu doutorado, em andamento, dedica-se ao estudo da obra de Günther Anders.

[1Günther Anders-Archiv, carta de Herbert Marcuse a Günther Anders, 12 out. 1965.

[2
Günther Anders. “Off limits für das Gewissen: Briefwechsel mit dem Hiroshima-Piloten Claude Eatherly” [Fora dos limites da consciência: correspondência com Claude Eatherly, piloto de Hiroshima]. In: Günther Anders. Hiroshima ist überall [Hiroshima está em toda parte]. Munique: Beck, 1995, p. 212.

[3Idem, p. xix.

[4Embora Anders tenha elevado o problema da discrepância ao ponto de fuga de toda sua obra, esse fenômeno foi também identificado por diversos autores da época e esteve presente, por exemplo, tanto nos comentários de Walter Benjamin sobre as armas químicas na Primeira Guerra Mundial quanto na análise de Hannah Arendt em Eichmann em Jerusalém ou mesmo em A condição humana, obra na qual há afirmações muito próximas do diagnóstico de A obsolescêndia do homem (como se lê na correspondência entre os dois, Arendt revela ter lido com entusiasmo o ensaio de Anders sobre a bomba atômica). No caso de uma comparação mais aprofundada entre a análise anderiana e a arendtiana do fenômeno Eichmann, ficaria evidente a analogia entre o que Anders chama de “imaginação” e aquilo que, em Arendt, é “pensamento”. Em todo caso, também para Arendt é gritante a “discrepância” em Adolph Eichmann: a partir de sua linguagem atrofiada (mesmo no momento de sua morte, ele só conseguia falar por meio de clichês), notava-se sua incapacidade de pensar, que estava muito aquém daquilo que ele fazia.

[5O que foi ressaltado pelo próprio Anders em sua leitura das Histórias do Sr. Keuner, presente no livro Mensch ohne Welt: Schriften zur Kunst und Literatur [Homem sem mundo: escritos sobre arte e literatura]. Munique: Beck, 1993.

[6Ludger Lütkehaus. Schwarze Ontologie: Über Günther Anders [Ontologia sombria: sobre Günther Anders]. Lüneberg: zu Klampen, 2002, p. viii.

[7Günther Anders-Archiv, carta de Günther Anders a Herbert Marcuse, 18 out. 1965.

[8Günther Anders. Die atomare Drohung [A ameaça atômica]. Munique: Beck, 2003, p. 52.

[9Günther Anders. Die Antiquiertheit des Menschen, v. 1, Über die Seele im Zeitalter der zweiten industriellen Revolution [A obsolescência do homem, v. 1, Sobre a alma na era da Segunda Revolução Industrial]. Munique: Beck, 2010, p. 218.

[10Paulo Arantes. “Sale boulot”. In: Paulo Arantes. O novo tempo do mundo. São Paulo: Boitempo, 2014.

[11Adorno-Archiv, “Probleme der Moralphilosophie (Vorlesungen)” [Problemas de filosofia moral (aulas)], 22 dez. 1956.

[12Günther Anders. Die Antiquiertheit des Menschen, v. 1, op. cit., p. 288.

[13Günther Anders. Hiroshima ist überall, op. cit., p. xviii.

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Erstveröffentlichung im FORVM:
Maio
2024
Autor/inn/en:

Felipe Catalani: Felipe Catalani hat einen Master-Abschluss in Philosophie von der Universität von São Paulo (usp) und Forschungspraktika an der Humboldt-Universität in Berlin und der Universität Paris-Nanterre in Paris absolviert. Seine Promotion, die derzeit läuft, widmet sich der Untersuchung des Werks von Günther Anders.

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